Retratos do Mundo Flutuante
O termo ukiyo-e significa, literalmente, “imagens do mundo flutuante transitório”. É derivado originalmente da ideia budista do caráter fútil e ilusório da existência mundana. Durante o período Edo, no entanto, o termo tomou um sabor hedonístico e foi ligado às diversões e prazeres da população urbana nas casas de chá e bordéis, no teatro Kabuki e nas arenas de luta sumô. Dada a pequena duração e inconstância da vida, o lema era: vive despreocupadamente, goza o momento e concentra todos os sentidos nos prazeres passageiros. E assim lemos, de uma forma impressionante, num romance de Asai Ryoi publicado em 1661 sob o título História do Mundo Flutuante (Ukiyo monogatari): “Vive para cada momento, observa a Lua, a cerejeira em flor e a folha do ácer, ama o vinho, as mulheres e a poesia, encara com humor a pobreza que te olha fixamente e não te sintas desencorajado por ela, deixa-te ser transportado pelo rio da vida como uma cabaça que segue à deriva rio abaixo, isso é o que significa ukiyo.”
Adele Schlombs
“Desde a idade de seis anos eu tinha mania de desenhar a forma dos objetos. Por volta dos cinquenta havia publicado uma infinidade de desenhos, mas tudo o que produzi antes dos sessenta não deve ser levado em conta.
Aos setenta e três compreendi mais ou menos a estrutura da verdadeira natureza, as plantas, as árvores, os pássaros, os peixes e os insetos. Em consequência, aos oitenta terei feito ainda mais progresso.
Aos noventa penetrarei no mistério das coisas; aos cem, terei decididamente chegado a um grau de maravilhamento – e quando eu tiver cento e dez anos, para mim, seja um ponto ou uma linha, tudo será vivo”
Katsushika Hokusai, (1760-1849), artista plástico japonês
A leitura deste texto me marcou profundamente na adolescência e teve uma influência decisiva na minha trajetória.
As primeiras culturas que atraíram a minha curiosidade, na infância, foram a egípcia e a japonesa, não lembro em que ordem. Pela sua estranheza, o imaginário japonês esteve presente em mim, influenciando, ora de maneira sutil, ora escancaradamente, o meu processo criativo, resultando numa série de trabalhos que compuseram uma exposição individual, “deZENho”, no Museu de Arte da Bahia, em 1988, de forte conteúdo figurativo.
Entretanto a abstração sempre foi uma meta na minha vida, só considerada possível a partir do momento em que estivesse suficientemente maduro como artista para cumpri-la. Depois da quase abstração atingida na mostra CIDADES INVISÍVEIS, em 2010 e em algumas/ telas das TRAMAS SINCERAS, em 2014, proponho os RETRATOS DO MUNDO FLUTUANTE, buscando inspiração no Ukiyo-e, não de maneira óbvia, mas procurando as sutilezas da forma, da cor e da maneira inovadora de conceber e tratar a paisagem, para apresentar as minhas paisagens imaginárias, difusas e abstratas.
Retratos do mundo flutuante, como visto, é a tradução de Ukiyo-e, estampa japonesa, desenvolvida ao longo do período Edo, executada com blocos de madeira usados para impressão, entre os séculos XVIII e XIX. Um dos expoentes do Ukiyo-e, foi o citado Hokusai, auto proclamado pintor louco, que retira daquele estilo o sentimentalismo, fazendo uma pintura formalista adequada às suas ilustrações para trabalhos literários e é responsável pela popularização da paisagem enquanto vertente (famosas Vistas do Monte Fuji e A Grande Onda de Kanagawa).
Esta mostra compõe-se de 31 quadros inéditos (incluindo 3 dípticos e um tríptico), numa busca da paisagem improvável, dos retratos do mundo que flutua na nossa imaginação.
Chico Mazzoni
A presença de arquitetos que são artistas plásticos na Bahia tem maior visibilidade a partir da década de 1960. À parte o arquiteto e urbanista Diógenes Rebouças, pelo caráter documentarista de suas pinturas, considerando a arte moderna, podemos mencionar como precursores Jamison Pedra, com suas pesquisas ligadas à Optical Art, Juraci Dórea, Silvio Robatto e Pasqualino Magnavita. Tendo surgido novos arquitetos que abraçaram as artes plásticas como segunda profissão, ampliou-se mais ainda a diversidade das conquistas criativas nesta área, sendo um dos destaques o artista e arquiteto Chico Mazzoni. A produção de artes plásticas de Chico Mazzoni é quantitativa e qualitativamente exemplar. De 1972 a 2017 realizou 58 exposições coletivas e de 1983 a 2017 17 exposições individuais, resultado de uma intensa e continuada prática criativa na área das artes plásticas e tudo indica que a formação disciplinada do Arquiteto complementou-se com a liberdade criativa do artista plástico, pois na obra de Chico Mazzoni existe um admirável equilíbrio entre disciplina técnica e liberdade criativa. Do Arquiteto a experiência perceptiva das configurações estéticas da arquitetura subordinada à racionalidade dos procedimentos construtivos e do artista plástico o vôo livre e sem amarras do ato criativo. O trabalho de Chico Mazzoni demonstra uma constante pesquisa e renovação de temas, técnicas e soluções plásticas.
Sempre admirei em Chico Mazzoni uma sensibilidade perceptiva diferenciada e uma capacidade incomum para as soluções plásticas de suas composições, hajam vista as exposições individuais realizadas: Chico Mazoni – desenhos, Imaginália, Arte-de-cor, Cena & Ótica, deZENho, Fotograma, Par ou Ímpar, Por esta luz que me alumia, Estação da Luz, Milênios no ar, Brasiliana, POP-UP, Vinte e Cinco, Cidades Invisíveis, Tramas Sinceras.
Os temas
Ao contrário de artistas que enfrentam dificuldades em titular suas criações, principalmente em obras abstratas, centenas de suas composições são acompanhadas de títulos bastante sugestivos. Na verdade são referências persuasivas mas que não exaurem nem comprometem o universo “significante” das obras. O repertório sígnico e analógico das legendas é bastante expressivo, mas não conclusivo e excludente. Suas composições não são ilustrações das legendas. Texto não é contexto. E a riqueza plástica, a força das criações formais e cromáticas de Chico Mazzoni, são os fatores preponderantes, o que nos conduz à fruição de paisagens inusitadas, imaginárias, exclusivas da imaginação criadora do artista, mas também composições sujeitas a infindáveis alternativas de interpretação do perceptor. E esse é o mágico poder de artistas como Chico Mazzoni que transformam a obra em verdadeiro sensor de afetos, emoções e sentimentos. Suas “Paisagens Flutuantes” fecundam a imaginação alheia em viagens pelo universo de fascinantes circuitos eletrônicos, (Souk, O Helicóptero e outras paisagens…), superfícies planetárias de cidades futuristas, a pele de corpos estranhos e inquietantes (Cinema, Século vinte, Paisagem quase visível…). Mas também a calma de paisagens paradisíacas, ecologicamente fascinantes e desejadas (I love Paris in the fall, O tempo é como o rio, Cara de Paisagem…) E muito mais.
Linguagem visual
A sintaxe plástica da obra de Chico Mazzoni é bastante diversificada, resultado do seu conhecimento e domínio das técnicas de composição, da organização da forma e do espaço visual. A intimidade que tem com o dualismo figura-fundo lhe permite obter excelentes resultados, quando controla as dimensões do espaço, alternando da criação ilusória do volume (“Brasiliana”) à planaridade composicional (“Tramas Sinceras”). O que também lhe permite, na maioria de suas composições, inclusive as de tendência à evocação tântrica, vencer o “horror Vacui” (Little boxes, Ganges…). Tudo com o conhecimento e a prática constante do jogo de luz e sombra (claro-escuro) e do peculiar e inusitado arco-íris de sua paleta das cores, como “Istanbul” e “Aurora Boreal”. O desenhista e o colorista muitas vezes se encontram. Nesta fase das “Paisagens Flutuantes”, a construção da forma é do domínio do exímio desenhista que aprendeu a admirar a arte dos grandes mestres do passado com as próprias obras originais. Figura abstrata de uma só dimensão, a linha, com Chico Mazzoni, passa a ter três e se torna protagonista da composição formal e cromática, capaz inclusive de gerar impossíveis presenças texturais, com movimento dirigido e acumulação de linhas paralelas A composição é concebida com planos, texturas e cores, mas todos gerados principalmente pela linha que é expulsa dos tubos de tinta pela sensibilidade, talento, domínio técnico, paciência infinita e imensa obstinação, do artista desenhista-pintor Chico Mazzoni. Desenhista, mas no sentido do designer que concebe uma figuração original e contemporânea.
Juarez Paraiso – Artista Plástico, Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, membro da Academia de Ciências da Bahia, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte
É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola.
E eu vou buscar no ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Nesses versos de Opiário, Álvaro de Campos fala acerca de uma busca. Insatisfeita com a substância imediata da vida, a sua alma procura alimento em lugar remoto e próximo. Desde Freud, sabemos que esse território estranho abriga os campos desconhecidos que cada um carrega em si mesmo. No entanto, essa busca não implica isolamento. O percurso de si para si contém paradas forçadas na dimensão do Outro, o primeiro Oriente que nos desorienta. Isso explica por que, nas viagens vertiginosas de artistas como Pessoa, podemos nos reconhecer. Em longínquas terras, sempre estivemos.
Chico Mazzoni foi buscar no remoto Oriente uma forte referência para a sua produção mais recente. O título da sua mostra, “Retratos do mundo flutuante”, evoca um tipo de arte japonesa; o que dá lastro conceitual ao seu trabalho e personalidade ao conjunto. No entanto, seus trinta e um quadros parecem indicar um novo Japão, país inventado onde o artista posiciona-se para redescobrir todas as coisas. Seu olhar surpreende, na vida, um caráter flutuante. Diante dos seus olhos e, por contaminação, diante dos nossos, tudo flutua com leveza e intensidade: os tempos, os corpos, a memória cultural, as paisagens, o helicóptero, a história e até mesmo o grito.
Maduro em sua técnica, Mazzoni parece ter liberado, junto com ela, um olhar infantil capaz de impor ao seu trabalho a grande alegria da descoberta. Assim, enquanto o Oriente buscado pelo heterônimo de Fernando Pessoa no ópio e na arte deve compensar a alma da enfermidade provocada pela sensação de viver, o Oriente que coincide à arte flutuante de Chico Mazzoni traduz experiências carregadas de vitalidade obtida no contato sensual com a substância imediata da existência. Espectador entusiasta do Theatrum Mundi, o pintor incute em suas formas o prazer que sente ao criá-las; e isso não parece separar-se da sua alegria de viver. Sendo instância, onde a percepção perde o automatismo, o Oriente dimensionado nas/ telas de Mazzoni é um lugar dramático e, simultaneamente, feliz. Suas montanhas azuladas, suas enganosas transparências causam impacto, sim, e muitas vezes exigem reflexão, gerando desconforto e conflito. Mas, onda ou deserto, o seu remoto Oriente revelou-se para mim, próximo e próprio, pátria minha que não hesitei em reconhecer e que muito amei descobrir.
Salvador, 27/01/2017.
Mirella Márcia Longo – Escritora, pesquisadora do CNPq e Professora Titular de Literatura Comparada na UFBA